As tragédias anunciadas e o Brasil do dia seguinte

IDI Opinião - As tragédias anunciadas e o Brasil do dia seguinte

A tragédia em Petrópolis tem muitas causas e responsabilidades, mas, com certeza, existe um ator isento: a natureza.

O sistema climático global está consolidado há milhares de anos (apesar do presente desequilíbrio, cada vez mais veloz em seus efeitos). Todo verão, massas de ar extremamente úmidas, os chamados Rios Voadores, responsáveis em grande parte pelo abastecimento de água, se deslocam do Norte e Nordeste do Brasil em direção ao Sudeste, atravessando parte do Planalto Brasileiro até chegar nas médias e grandes cidades da Região.

Antigamente eram chamadas das Chuvas de Março, que fechavam o verão. Hoje, devido à ação humana, a instabilidade climática pode estar formando chuvas de janeiro ou de fevereiro, mas é fato, devido ao calor provocado pela inclinação do planeta, mais a direção das massas de ar, todas e todos sabem que vai chover muito. Além disso, importantes agências climáticas mundiais apontam para uma tendência cada vez maior de temperaturas extremas para as próximas décadas, o que potencializará problemas nunca resolvidos.

A população brasileira conheceu ao longo do Século XX um acelerado crescimento urbano, somente entre as décadas de 1970-1980 o Brasil efetivamente se tornou um país onde a maioria das pessoas moram em cidades.

Infelizmente (como já é conhecimento de cada morador de uma cidade brasileira), esse crescimento se estabeleceu sem planejamento, impondo na maioria das vezes condições degradantes de vivência nos espaços urbanos, que fragmentam espaços e marginalizam lugares e territórios. Tal descaso com a organização das cidades impacta diretamente no Direito à Cidade, em especial das camadas mais populares. A habitação, neste contexto, é mais uma expressão do desapreço de gestões governamentais em relação à gestão dos territórios e populações das cidades brasileiras.

Petrópolis, bucólica cidade fluminense, com cerca de trezentos mil habitantes, localizada na Serra dos Órgãos, situada a setenta quilômetros da capital, não foge da regra. Segundo dados do IBGE1, 18% de suas residências não possuem esgotamento sanitário adequado e 55% não possuem urbanização adequada (presença de bueiro, calçada, pavimentação e meio-fio). Além disso, à exemplo de tantas outras cidades brasileiras e também por sua geografia, muitas de suas encostas foram ocupadas por moradias de baixa, média e alta classe de renda.

E aqui temos um grande problema que os moradores das comunidades das grandes cidades conhecem tão bem: os deslizamentos de encostas. Ao retirar a cobertura vegetal de um determinado lugar, deixamos o solo exposto à erosão e ao intemperismo, sem as raízes dos vegetais perdemos a compactação necessária para mantermos o solo coeso, um pouco mais protegido, porém, sem a garantia da vegetação os deslizamentos de terra e suas consequências são somente uma questão de tempo.

O desfecho não podia ser menos óbvio, revelando o trágico sentimento de país do “dia seguinte”. Centenas de pessoas mortas, tantas outras desaparecidas, vidas precocemente interrompidas e uma cidade incapaz de imaginar o seu futuro.

A pergunta que fazemos é: até quando aceitaremos que estas sejam tragédias anunciadas? Até quando aceitaremos a falta de comprometimento do Poder Público em estabelecer o Estatuto das Cidades e outros instrumentos que possam assegurar uma vida mais digna à população, principalmente aos seus estratos mais populares?

Nos dias seguintes à brutal tragédia (mais uma, depois de cidades baianas e mineiras), especialistas e políticos discutiam soluções, tentavam apontar responsabilidades e transmitiam alguma solidariedade.

A sociedade não precisa deste tipo de “encenação”, o que precisamos e exigimos são direitos consolidados e cumpridos, precisamos e queremos um novo tipo de gestão das cidades que não se deixem levar somente por interesses populistas e do capital. Queremos viver e nunca mais contar familiares e amigos mortos. Queremos viver!

Colocar a culpa na natureza só continuará nos matando.

[1] Fonte: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/petropolis/panorama. Acessado em 22 de fevereiro de 2022

3 comentários

  1. Cláudio Henrique Pessoa em 26/02/2022 às 17:33

    Excelente texto, reflexão e alerta. Impressionante a hipocrisia histórica e cultural de imputação de culpa a quem exatamente e o único isento. Uma efetiva mistura de ignorância é covardia.

    • idi_admin em 16/04/2022 às 15:12

      Obrigada Claudio Henrique pela leitura e partilha! Seguimos juntos na luta. Abraço

  2. Adriananobredemellocardoso em 26/02/2022 às 17:14

    Muito bom, Paulo!!!

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