Saúde da População Negra e Racismo
Quando pensamos na associação entre saúde e racismo, algumas questões nos são importantes: a primeira delas é entender, em linha gerais, o que é racismo e como ele se configura na sociedade brasileira; a segunda é a relação entre as condições específicas de saúde que incidem sobre a população negra e algumas das políticas de saúde que reconhecem as especificidades da população negra e o racismo.
O racismo se estabelece na afirmação de uma superioridade branca natural, por meio de mecanismos ora sutis e sofisticados, ora explícitos e violentos, que servem à perpetuação de uma ordem classista e racial de manutenção da população negra como subalterna, silenciável, dispensável-indispensável, matável, excluível. O racismo à brasileira implica em uma denegação, um não reconhecimento do caráter racista que constitui a sociedade brasileira e a reatualiza. Um racismo que orientou a formação dessa sociedade e sustentou um privilégio de classe e raça durante séculos, um racismo disfarçado, escondido, não afirmado e logo não superado, não reparado e que, por simplesmente “não existir”, não seriam necessárias políticas para combatê-lo. Se o racismo orientou a formação da sociedade e perpetua discursos e práticas de discriminação e subalternização, ele é estrutural. Sendo estrutural, está presente nas instituições públicas e privadas, nas relações cotidianas, na formação do psiquismo, nas políticas e consequentemente na saúde, sua gestão, suas práticas e suas políticas.
Devido às determinações sociais da saúde, a população negra na sua interação biológica, social e ambiental, está sujeita a uma maior prevalência de doenças específicas que afetam diretamente suas taxas de adoecimento e mortalidade. Entre as doenças, agravos e condições mais frequentes nessa população em questão estão a anemia falciforme, a diabetes tipo II, a hipertensão, o câncer de colo de útero e o de mama, miomas ou fibromas. Além dessas questões específicas, a população negra está mais exposta a violências como, por exemplo, a institucional (nos órgãos e instituições públicas e privadas) e a policial, como a do encarceramento em massa (que relega 710 mil pessoas aos presídios expostas a tratamento desumano e a epidemias tais como a pneumonia, tuberculose, HIV/Aids), a da violência do Estado e a da guerra às drogas.
Infelizmente, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), assim como outras políticas de saúde que também são importantes para o atendimento à população negra, encontram-se desmontadas, parcialmente privatizadas e desfinanciadas pelos sucessivos governos estaduais, municipais e federais. Embora representem avanços no sistema único e a possibilidade de pensar políticas específicas de saúde para o enfrentamento dessas pautas, que são complexas e necessitam de articulação intersetorial, essas políticas também nos dizem que o Sistema Único de Saúde não é tão único assim, posto que precisa de políticas específicas para a exercício do cuidado integral.
No início deste texto, afirmo que o racismo é estrutural e explico o que é e por que existe. Podemos pensar que, talvez por ser estrutural, para combatê-lo não existiriam soluções possíveis, não haveria nada a ser feito para mudar essa condição. Mas é justamente o contrário: se o racismo no Brasil é velado e estrutural, o combate se dá pela via do seu reconhecimento enquanto tal e seus efeitos, pelo seu desvelamento, pela sua desnaturalização.
É preciso dizer que o povo negro construiu essa sociedade e foi sistematicamente vilipendiado por ela própria, que tem sido morto, estuprado, usado, vítima de omissão e descaso e que isso precisa ser reparado, para que seja possível afirmar a cultura afro-latino-brasileira, afirmar o saber popular, a ciência sul-tropical, nossa beleza, nossa construção de afeto e sua demonstração própria, nossa culinária, nossa história, nossa saúde, nossa vida. O racismo e seus efeitos nas políticas de saúde, na produção de subjetividade, no psiquismo, afirma-se como um ser morto que vive a assombrar, como um ser que não foi enterrado devidamente e cabe a nós todos enquanto sociedade realizarmos o funeral. Só existirá uma democracia no Brasil se seu racismo for reconhecido e combatido.
Texto: Thayna Trindade – Equipe IDI
Foto: Brasil de fato