Medida Provisória: fantasia que imita a realidade

IDI Opinião - Medida provisória

Medida provisória, um filme de Lázaro Ramos, que estreou dia 14/04 nos cinemas do Brasil, baseado na obra “Namíbia, não!”, e que já conta com exibições em mais de 330 salas espalhadas pelo país, é o mais novo hit cultural do movimento negro e mais interessante obra cinematográfica crítica da realidade brasileira deste momento. Alguns comentaristas afirmam que o filme conta sobre um futuro distópico, mas procurarei classificá-lo aqui como uma crítica figurativa a um presente real.

O governo brasileiro decreta uma medida provisória obrigando que todos os de ‘melanina acentuada’ sejam capturados e enviados imediatamente à África. O ato seria classificado como uma ação de reparação social aos danos causados pela União. Mas, para não incorrer no crime de “invasão de domicílio”, eles só podem ser capturados na rua.

Antes desse clímax, o filme começa com uma decisão judicial de reembolsar negros e negras pela escravização de seus ancestrais, o que promoveria uma reparação financeira histórica nunca vista pela humanidade, mas logo ela é rescindida e substituída pela verdadeira medida provisória, nos lançando na trama. Neste ponto, o filme nos provoca alguns questionamentos: direito é sinônimo de justiça? Justiça significa direito? Pode-se enviar negros e negras “de volta” para a África, mas não se pode invadir um domicílio? Pode-se matar, deixar morrer, encarcerar, negar acesso às políticas públicas, à justiça e à reparação? O que é legal e ilegal no nosso sistema hoje? O que é devido e justo no processo legal na atualidade?

Quase quatro séculos de escravidão forjaram o fortalecimento e o protagonismo do racismo como fator de organização, estruturação e hierarquização das relações sociais brasileiras. Não poderia ser diferente que seu sistema de direito e justiça refletisse as bases racistas que estruturam essa sociedade. Se está na lei, deve ser cumprido? É ético e moral? Escravizar seres humanos, possuir, explorar, matar, violar, estuprar, açoitar, era “legal” no passado, e na linha temporal futura proposta pelo filme, pode ser “legal” deportar obrigatoriamente corpos melaninados para a África.

Entre 1525 e 1867, 3.189.262 africanos escravizados foram trazidos para o Brasil, em todo processo de escravização, estima-se mais de 12,5 milhões de escravizados. Sabemos que 37% de todo contingente de escravizados das Américas se concentrou no Brasil, de forma a construir uma nação miscigenada por essência, solidificada em sangue, suor, lágrimas e trabalho afro-indígena. Façamos breves contas para saber quanto daria para cada um de nós de todas as vidas e recursos que foram roubados. Como mencionado no filme, é mais barato exportar, deixar morrer ou matar.

Adotei a ênfase na melanina, pela perspectiva do racismo colorista que vigora no Brasil, sabiamente explorado pelo filme. A ideia de uma “raça branca brasileira pura”, talvez seja a própria distopia (ou seria utopia da branquitude?) apresentada pelo filme. É irracional cogitar esta ideia, já denunciada no filme “Bacurau”, escrito e dirigido por Kleber Mendonça, na medida em que a civilização brasileira foi constituída pela mestiçagem. O que nos leva a considerar que “branco” no Brasil é apenas um cobertor, uma categoria de classe, que pessoas de pele mais clara que a média e detentoras de um determinado poder econômico e social, se cobrem para recalcar a vivência do racismo e projetar no outro o totem da miscigenação. Sabemos que 56% da população brasileira é negra, no Brasil. Para a Europa e Estados Unidos, 100% da população brasileira é negra.

Racismo é um elemento organizador da desigualdade no Brasil e isso é corajosamente escancarado no filme. O brilhantismo de Lázaro como diretor em denunciar isso, em resistir aos boicotes da Ancine, em trazer a militância para assistir, em gozar com pílulas de humor e ironias sobre a violência da esquemática, em trazer atores maravilhosos para mostrar essa dura realidade, em representar o simbólico das cenas e nos deleitar com referências faz este filme é imperdível e necessário! Como obra cinematográfica, como militância, como resistência e re-existência.

Thayná Trindade
Diretora do Instituto Por Direitos e Igualdade

Que as artes possam ser espaço de inquietação, provocação e ativismo e que haja mais espaços para que todos possam assistir e debater. E você, já viu o filme? O que achou?

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