“Isso aqui vai virar uma Cracolândia!”

IDI Opinião (2)

Rio de Janeiro, 02 de dezembro de 2021.

Por Rafael Guedes


Alguns dias atrás, a Priscilla, minha companheira e colaboradora do IDI, comentou sobre um incômodo que ela sentiu quando ouviu de uma pessoa a frase que dá título a esse texto.


Vou contextualizar: aqui perto onde moro, em Jacarepaguá, há uma região na qual tem aumentado a concentração de pessoas ocupando os espaços debaixo de um viaduto, ao final da Linha Amarela.

É comum que façamos uma associação dessa situação à condição de busca por abrigo, na falta de uma moradia segura, e/ou à busca por acesso ao consumo de algumas drogas criminalizadas. Como nunca conversei com as pessoas que estão por lá, não quero afirmar que meus julgamentos mencionadas acima sejam verdadeiras. Quero me apegar ao incômodo da Pri e à nossa visão que adotamos como plausível.


De acordo com ela, dizer que “isso aqui vai virar uma Cracolândia” em tom de reclamação demonstra insensibilidade com as pessoas que estão sujeitas à dependência química, além de soar vago e sem eficácia no que diz respeito ao enfrentamento dessa situação.


Embora eu tenha optado por não afirmar que aquelas pessoas são usuárias de crack, como o título sugere a partir de uma expressão pejorativa, eu pretendo usar este espaço para compartilhar minhas dúvidas em relação à dependência química, ao comércio de drogas e aos recortes socioeconômicos nos quais essa população em específico está inserida.


A primeira é: qual o impacto do consumo de álcool e outras drogas, que começa em maior escala na fase da adolescência, nas diversas dimensões da vida de uma pessoa? Será que temos estudos bem difundidos que mostram como se dá o desenvolvimento das nossas relações interpessoais de acordo com a nossa forma de lidar com as drogas recreativas?


A segunda: como estamos enxergando a relação de incentivo ao consumo de álcool, que causa dependência fisiológica, com a busca de lucro na sua comercialização? Afinal, estamos falando de uma indústria cuja maior produtora brasileira teve, no terceiro trimestre de 2021, receita líquida na casa dos 18 BILHÕES de reais.


Adendo: aqui menciono somente o álcool, porque as outras drogas não têm meios oficiais e regulamentados de publicidade.

E terceira: como as consequências do consumo de drogas e a dependência química se manifestam nos diferentes recortes socioeconômicos? Ou seja, como as pessoas com diferentes rendas mensais fazem para consumir, para se manter consumindo, para conciliar este consumo com as suas necessidades básicas, para se manter mentalmente saudável e para conseguir ajuda, caso entre em um quadro nocivo por conta da dependência?

Não me parece difícil reconhecer que, quanto menor a renda, mais vulnerável fica uma pessoa com quadro de dependência química. E quando faço os questionamentos acima, tenho o intuito de reforçar que não podemos ignorar nunca a inclinação cruel do capitalismo em priorizar o lucro acima da nossa saúde.


O debate sobre o consumo de drogas é complexo e, com certeza, não se esgota em uma coluna de opinião, porque a quantidade de variáveis envolvidas exige seriedade e compromisso público. Aqui fiz um apanhado sobre questões que me vêm à cabeça frequentemente, mas que não vejo ressoar em espaços de ampla discussão.

Fundamental mencionar que a urgência desse tema passa pelo debate penal, porque a criminalização de algumas drogas está matando muita gente e a repressão às drogas tem cor e CEP definidos. Seria leviano não mencionar essa questão.


Voltando ao título desse texto, precisamos nos incomodar sempre com a teimosia que temos em achar normal a desumanização dos nossos olhares. Não gente, “cracudo” não é um termo plausível! Essas pessoas podem estar adoecidas – como muitas outras em contextos diversos – e precisando de ajuda. E temos o dever humano de reafirmar que elas são pessoas, que talvez estejam em um quadro grave de dependência química, por uma droga agressiva questionada inclusive por chefes do comércio de outras substâncias proibidas, sobre sua inserção no mercado do Rio de Janeiro ou não.


Não percamos nunca de nossos radares que estamos falando de pessoas.


E, para finalizar, “Cracolândia” me soa romântico para um espaço que abriga casos graves de saúde física e mental, causados pela dependência química.


As palavras representam e constroem ideias, e elas precisam estar sempre a serviço do cuidado, e não da barbárie.

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