O racismo estrutural e institucional no Sistema de Justiça Brasileiro
Uma menina negra de 10 anos engravidou após ser estuprada. Apesar de ter manifestado o desejo de realizar o aborto, estando legalmente amparada, o hospital se recusou a fazer o procedimento. O caso foi, então, para o Poder Judiciário.
Por decisão da Juíza Joana Zimmer (TJSC), corroborada pela Promotora de Justiça Mirela Alberton (MPSC), sob a justificativa de proteção contra o agressor-estuprador, a criança foi levada a um abrigo. Afastada de sua mãe e protetora, a menina se viu em um ambiente de péssimas condições, conforme mencionado no processo, como longe do afeto dos seus.
É preciso salientar, todavia, que, ainda que houvesse efetiva possibilidade de outros abusos pelo agressor-estuprador, a retirada da convivência familiar para o encaminhamento ao abrigo é última alternativa segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que prioriza o convívio da criança com seus familiares. Nessa situação, melhor seria o afastamento do agressor, através da decretação da sua prisão.
A medida serviu, em verdade, para impedir o acesso ao aborto legal.
Como se não bastasse ter sido negado o seu direito ao aborto pelo hospital e ser encaminhada a um abrigo, a maior violência contra essa criança (se é que podemos mensurar a sequência de horrores vivenciados por ela e sua mãe!), ainda estava por vir.
A mãe clama que a menina retorne ao lar e seja cuidada por ela, mas, tanto a Juíza como a Promotora de Justiça, ignoram a lei e o melhor interesse da criança, passando a agir durante todo o seu depoimento de forma a revitimizá-la, constrangê-la e torturá-la. Não havia sequer a presença de profissional capacitado para acompanhar o ato, outro direito seu retirado.
A desumanização perpetrada pelas representantes das instituições do sistema de justiça é monstruosa. A criança é novamente violentada, agora pelos agentes do Estado a serviço da Justiça, ao ser constrangida a seguir com uma gestação que nem possui capacidade de compreensão:
“Suportaria ficar mais um pouquinho?”
“Queres escolher algum nome para o bebê?”
“Você acha que o pai do bebê concordaria com a entrega para adoção?”
“Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal.”
É importante observar que o ECA garante a criança a absoluta prioridade na efetivação dos direitos considerados como fundamentais pela Constituição Federal, como a saúde física (gestação de alto risco) e psíquica (gravidez resultado de um estupro), o que não foi feito. Ao revés, as autoridades presentes se “esqueceram” do papel ao qual se comprometeram ao integrarem o Sistema de Justiça, que não é o de defender crenças ou valores morais pessoais, mas o de atuarem para garantir a efetividade dos direitos respaldados na lei.
É imprescindível dizer que não se trata, nesse caso, de discutir a descriminalização do aborto, mas de situação na qual há permissão legal para realização do procedimento, aqui denominado aborto humanitário, concedido às vítimas de estupro. Aliás, a circunstância ainda evidencia outra permissa de aborto legal, quando a gestante corre risco de morrer. Nesse ponto, é importante destacar que não há limite máximo de idade gestacional para o aborto legal ser feito, tampouco necessidade de autorização judicial para tanto.
Episódios como esse não são isolados e, nesse caminho, faz-se necessária a pergunta: quem são os operadores/operadoras do Sistema de Justiça Brasileiro?
Apesar de parcela significativa da população brasileira ser negra (pretos e pardos), há uma sub-representação nas carreiras políticas (Judiciário, Ministério Público, Executivo e Legislativo), principalmente no que pertine aos cargos mais elevados.
De acordo com pesquisa realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apenas 12,8% dos juízes são negros no Brasil e, em todo o Judiciário brasileiro, somente 30% dos servidores são negros. Além disso, quanto à composição do Ministério Público, segundo estudo realizado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CeSec) da Universidade Candido Mendes, 70% dos seus membros são homens e 77% deles são brancos.
Esse retrato da composição do Judiciário e Ministério Público brasileiros expõe uma grande concentração de agentes políticos de uma classe social branca elitizada, distante da realidade do restante do País, a branquitude dos operadores do Sistema de Justiça.
Nesse sentido, o que se percebe nas reiteradas decisões judiciais e atuações ministeriais é a completa ausência de compreensão da realidade, baseada, na maioria das vezes, a partir de estereótipos e crenças distorcidas e limitadas ao “mundo” em que vivem. Não existe efetiva compreensão e consideração dos pontos de vista existentes para além dos padrões aos quais estão acostumados em seus nichos.
E, numa sociedade em que o racismo está historicamente ancorado, o Sistema de Justiça que não trate de maneira ativa e como um problema a desigualdade racial dentro da sua composição e nas suas decisões irá facilmente reproduzir as práticas racistas já tidas como “normais” em toda a sociedade. É o racismo estrutural e institucional do nosso Sistema de Justiça.
Portanto, é urgente a eficaz aplicação de ações afirmativas e critérios que objetivem ampliar a participação dos negros e negras de maneira equânime em todos os níveis das carreiras do Sistema de Justiça, imprescindível para qualquer país que se declara democrático.
Texto: Nani Werneck – equipe IDI
Imagem: The Intercept Brasil