Dia da consciência de comunidade negra
Rio de Janeiro, 20 de novembro de 2021.
Por Heitor Pereira Silva
É atribuída a Graciliano Ramos a seguinte afirmação “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”. Mas, dizer o quê, a quem, como, e sempre… Sem discordar do velho comunista, também se pode pensar nas palavras como capazes de produzir silêncios, vários. Sim, os silêncios não são iguais em suas intensidades. Em tantos discursos atualmente em voga, há muita coisa silenciada, de diferentes maneiras. O que dizer, como dizer e para quem dizer nos parece, na realidade, uma escolha difícil, normalmente carregada de valores e posições que nos colocam em rota de colisão indesejada com seus contrários, contraditórios, ou simplesmente com aqueles que podem negar a validade de nosso discurso, e das práticas neles inspiradas. Tudo isso faz do dizer um ato político, que reflete escolhas, engajamentos, exclusões.
O dia nacional da consciência negra é um desses momentos em que se multiplicam discursos e silêncios, discursos silenciadores, sobre ser negro, ou sobre o que é ter consciência negra, ou sobre o racismo e seus tentáculos. Nessa ocasião experimenta-se a confrontação direta com discursos que pretendem determinar nossos lugares, valores, e nossos próprios ‘dizeres’.
Essa data é importante como marco na luta contra discursos que se pretendem hegemônicos, dominantes, e ajuda a erigir, também, um discurso próprio, que não reconhece obrigações ou margens senão aquelas que ele mesmo se dá. Ser negro é lutar pela autonomia do discurso próprio sobre ser negro.
A batalha de narrativas e discursos, que mais uma vez se exponencializa nessa data, produz silêncios cruéis, o que a torna para nós uma oportunidade muito especial de remover o véu, desmascarar contraditórios implícitos nesse entrelaçamento de narrativas, sobretudo quando não se percebe um fato inegociável: nós somos uma comunidade!
Por mais indissociável que a comunidade seja do processo de formação da pessoa, é a ideia de coletividade que emerge do entrelaçamento de práticas, conquistas e lutas do povo negro. Mas não emerge para todos: aqueles que a sentem como a força motriz de sua própria personalidade e reciprocamente restituem ao grupo tudo o que puderam dele receber; ela emerge para aqueles que estão atentos aos movimentos espalhados por todo país, e que participa dos processos organizacionais em suas localidades; ela emerge para todos aqueles que fazem de seu rosto, suas ideias, seu corpo, um dispositivo de visibilidade das causas da população negra, destacando sua singularidade mesmo quando são atravessadas por causas de outras naturezas, sejam elas sociais, políticas, econômicas, culturais etc.
Viver fora da comunidade é viver sem as condições de expressar o que há melhor em si mesmo, é não ter um lugar em que possa ser ouvido, e consequentemente, não desenvolver um sentimento de pertencimento. Sobonfu Somé nos deixa esse ensinamento. É somente em comunidade que o melhor de nós aflora, é nela – na comunidade – que encontramos pessoas que afirmam quem nós somos e nos ajudam a externalizar nossos dons. Sem essa referência, ficamos carentes e somos presas fáceis para o individualismo e o consumismo, e para a perniciosa ideia de que nossas conquistas individuais prescindem das lutas coletivas.
Eis a máscara arrancada. O dia da consciência negra é um dia para nos lembrarmos da comunidade que somos, com o direito a alternar discursos homogêneos, unidades, coerências, com polissemias, dissonâncias e dispersão, mas continuamos uma comunidade. Nos impedir de vermos a nós mesmos com esse olhar é uma das tarefas mais arduamente encampadas pelos discursos e pelas políticas raciais. As diferenças entre nós negros e negras não pode ser maior que nossa história comum, nossa ligação com nossos ancestrais, nossos ideais de vivermos sem sermos violentados. Somos uma comunidade e estamos em guerra, e infelizmente, muitos dias da consciência negra ainda virão até que cessem todas as hostilidades por sermos quem somos.
Epa Babá!